Tecnologia Científica

Invisa­veis, mas perigosos
Pesquisadores da Unicamp detectam contaminantes emergentes a partir de novas técnicas anala­ticas
Por Luiz Sugimoto - 15/07/2019

JU-Online

Os contaminantes emergentes são assim chamados porque falta legisla¡-los, ou seja, estabelecer valores ma¡ximos permitidos em matrizes como rios, a¡guas subterra¢neas ou águapota¡vel. No entanto, o processo regulata³rio não étrivial. Um exemplo cla¡ssico destes contaminantes éo 17α-etinilestradiol, horma´nio usado nas pa­lulas anticoncepcionais, cujo critanãrio estabelecido internacionalmente com base em ensaios toxicola³gicos, que não oferece risco para a saúde humana, éde 30 picogramas (milionanãsimos de micrograma) por litro. Ocorre que, na prática , não existe uma ferramenta anala­tica capaz de quantificar concentração tão baixa desse contaminante na águaoslogo, não hácomo transformar o critanãrio em lei, mesmo sabendo que o horma´nio nos faz mal. 

“O equipamento que possua­mos trabalha com um limite de 10 nanogramas por litro, cerca de 300 vezes maior”, compara a professora Cassiana Carolina Montagner, responsável pelo Laborata³rio de Quí­mica Ambiental do Instituto de Quí­mica (IQ) da Unicamp. “Se detectamos o horma´nio neste equipamento, significa risco a  saúde, pois estãobem acima do critanãrio descrito pela literatura internacional. Mas, se não detectamos, não significa ausaªncia do horma´nio; talvez ele esteja presente em concentrações que o equipamento não consegue medir. a‰ uma falsa interpretação que estamos sempre tentando corrigir. Hoje, nenhumpaís do mundo legisla sobre o 17α-etinilestradiol porque não hácomo monitora¡-lo nessa concentração.”

A docente do IQ observa, contudo, que a ecotoxicologia éuma área que vem avaçando rapidamente, devendo oferecer novos valores em breve. “A literatura sobre contaminantes emergentes estãocrescendo muito na interdisciplinaridade entre monitoramento e técnicas anala­ticas. Uma verdade que a ecotoxicologia nos mostra éque as concentrações de compostos que causam risco a  saúde e ao ambiente são muito baixas. Estamos progredindo cada vez mais nos testes e apontando valores ma¡ximos (critanãrios) em concentrações menores, enquanto a instrumentação anala­tica vai buscando quantificar esses compostos nessas concentrações.”

O grupo de Cassiana Montagner tem dois trabalhos publicados visando este avanço cienta­fico em relação aos contaminantes emergentes, ambos em vea­culos da Sociedade Brasileira de Quí­mica: o primeiro na Quí­mica Nova, procurando trazr um panorama nacional das pesquisas para saber quais são as classes de contaminantes emergentes de maior interesse, em diferentes matrizes; o segundo trabalho foi publicado este ano no Journal of the Brazilian Chemical Society (JBCS), levantando o que já se sabe sobre o tema, a partir de dez anos de pesquisas no Laborata³rio de Quí­mica Ambiental ose com foco no estado de Sa£o Paulo, que tem a maior densidade populacional dopaís e alta exigaªncia de águapara irrigação, indaºstria, pecua¡ria e consumo humano, nesta ordem.

Professora Cassiana Montagner, coordenadora das pesquisas
A revisão de pesquisas sobre contaminantes emergentes, publicada na Quí­mica Nova, resultou em uma lista de 56 artigos publicados em 20 anos (1997-2017), que revelam a ocorraªncia de cerca de 200 compostos em a¡guas residuais, superficiais e pota¡vel em 11 dos 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. A regia£o Sudeste apresentou o maior número de estudos, principalmente territa³rio paulista, que ostenta padraµes de consumo semelhantes aos depaíses desenvolvidos, acumulando, no entanto, problemas ambientais ta­picos depaíses em desenvolvimento, relacionados especialmente a  falta de saneamento.

Já o artigo no JBCS retrata a ocorraªncia de 58 contaminantes em 708 amostras de a¡guas de beber, de rios, subterra¢neas e residuais, todas coletadas no estado de Sa£o Paulo, entre 2006 e 2015: são nove horma´nios, 14 fa¡rmacos e compostos de cuidado pessoal, 8 industriais, 17 agrota³xicos e 10 drogas ila­citas.  “Na verdade, já ta­nhamos muitos dados de ocorraªncia em diferentes matrizes e quera­amos interpretar os números para uma avaliação de risco. Criamos um banco de dados a partir de teses e artigos e buscamos critanãrios na literatura internacional que pudessem nos nortear tanto em relação a  proteção da vida aqua¡tica nos rios, quanto para a saúde humana considerando a ingestãoda águade torneira que consumimos”, esclarece Cassiana Montagner. 

Conforme a professora, seguindo os critanãrios da literatura, vários compostos apresentaram risco para a vida aqua¡tica, como cafea­na, paracetamol, diclofenaco, 17β-estradiol, estriol, estrona, testosterona e triclosan. Em relação aos critanãrios para a águapota¡vel, estavam presentes 22 compostos, sem risco de efeitos adversos nas concentrações encontradas.  “a‰ importante esse olhar para a proteção da vida aqua¡tica, que a s vezes não éprioridade das agendas, mas que precisamos considerar, inclusive agora diante dos objetivos do desenvolvimento sustenta¡vel estabelecidos pela ONU. A saúde humana chama mais atenção das pessoas e em princa­pio não haveria um risco direto associado aos compostos, exceto pelo horma´nio, que émuito potente em nosso organismo.”

Exposição crônica

Além do horma´nio da pa­lula anticoncepcional, os agrota³xicos são muito ativos e também estãopresentes nessas concentrações residuais, o que leva a pesquisadora da Unicamp a esclarecer outro ponto importante. “A concentração émenor que os valores permitidos em nossa legislação e de outrospaíses, mas a exposição crônica aos agrota³xicos e o efeito enda³crino ou mesmo neurola³gico que podem causar, não estãocontemplada no valor ma¡ximo estabelecido ose a águaéuma via de exposição conta­nua, uma fonte direta de onde bebemos todos os dias. E, claro, temos ainda a ingestãode alimentos e, dependendo da regia£o, a inalação de pesticidas.”

Os fa¡rmacos são igualmente bioativos e suas moléculas estãona águade beber e nos rios, ainda que em concentrações menores do que as doses ingeridas para tratamento. “a‰ mais um problema associado a  ingestãode um pouco, poranãm, todos os dias. As pessoas se assustam quando dizemos que bebemos fa¡rmaco, produto de higiene, cafea­na e atécocaa­na. A fonte éa mesma, todos estãojuntos. Os efeitos não são agudos, ninguanãm vai morrer amanha£ por conta disso. A questãoque chama atenção éo desencadeamento de uma sanãrie de doenças que podem ser potencializadas devido a essa exposição crônica”, pondera Montagner.

Outro aspecto destacado no artigo do JBCS éque as concentrações dos vários compostos encontrados no esgoto e nos rios são da mesma ordem de grandeza, mesmo no Sudeste, que possui um dos maiores a­ndices de tratamento de esgoto dopaís. “Os a­ndices de saneamento em Sa£o Paulo são considerados de bons a excelentes. A indicação éde que o tratamento de esgoto não remove os compostos ou de que hámuito esgoto bruto sendo lana§ado nos mananciais. Ou, ainda, de que o tratamento convencional não éefetivo, o que requer melhorias nos sistemas existentes. Na³s pesquisadores temos claro que a qualidade da águade torneira éum reflexo do manancial: se os contaminantes que estãono esgoto va£o para o rio, vamos acha¡-los também na águade beber.” 

Modernização do sistema

Na opinia£o de Cassiana Montagner, o sistema de saneamento ba¡sico deve ser repensado em sua totalidade, a fim de atender ao padrãode vida atual. “Ha¡ poucas décadas, não ta­nhamos uma exposição tão grande a essa quantidade de compostos, exceto a alguns metais e agrota³xicos. O sistema tradicional não foi projetado para esse tipo de contaminação. Em uma palestra, estimulei o paºblico a descobrir de onde vinha a águaque chegava a  sua casa, ir atéo manancial e se perguntar se nadaria nele. a‰ uma forma de a população conhecer o seu redor, fazer uma primeira avaliação e questionar os órgão de governo.”

A docente da Unicamp assegura que existe tecnologia para purificar a águaeliminando inclusive os contaminantes emergentes, e que poderia ser adaptada a s plantas atuais, tanto de tratamento de águacomo de esgoto. “Tenho trabalhado com colaboradores para trazer a tecnologia empregada em outrospaíses para a realidade brasileira. Acontece que épreciso investir no replanejamento das plantas e também em pesquisa. Como os responsa¡veis não são cobrados, não se tem uma motivação muito grande. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde morei por alguns meses, écomum beber águada torneira e nadar nos rios que atravessam os centros urbanos. La¡, os tratamentos convencionais são usados apenas em águacaptada de mananciais protegidos: o esgoto passa por uma sanãrie de tratamentos e o efluente lana§ado não causa impacto no rio. Ou seja, hátodo um sistema de saneamento ba¡sico capaz de proteger os animais e os seres humanos dos resíduos gerados pelas atividades antropogaªnicas.”  

 

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